Esses
dias fiquei pensando na coleção de estereótipos femininos dos quais já fui
vítima durante a vida. Passei pela sapatão desengonçada (apelidada de
“jamanta”), pela CDF frígida, pela maria-moleque, pela gorda mal-amada, tudo
isso até a oitava série mais ou menos – inclusive, vou precisar de um post só
pra contar essas histórias decadentes da minha infância e pré-adolescência, mas
fica pra uma outra hora. A partir do colegial as coisas começaram a mudar um
pouco, chegando ao status de “roqueira rebelde”, “nóia”, basicamente a
revoltada clássica, com sérias tendências bully (revanchismo).
Mas, nenhum estereótipo pode ser tão feroz quanto aquele
que mais tarde eu conheci: “puta”. Nas suas variações, “vagabunda” ,
“vadia”, “biscate”, e claro… “rodada”. Não é novidade que as mulheres só tem
duas opções dentro do patriarcado, Santa ou Puta, Maria ou Eva, boa
esposa/mãe/namorada ou vagabunda marginal. As pessoas não conseguem enxergar as
mulheres como pessoas plurais, autênticas e autônomas, elas precisam ter seu
comportamento enquadrado nessas categorias, e existe uma vigilância especial no
campo da sexualidade e do corpo. Com quantos seres você transou, quantas vezes
e como o fez parece constituir a identidade da mulher, e determinar o nível de
respeito com que será tratada.
Quanto
mais sexo, pior a mulher é. É, exatamente, mais experiência sexual = menos
dignidade. Fórmula bem pensada essa, hein? Pois é, todo mundo engoliu essa
lorota e segue com fidelidade. A fonte desse pensamento é bem clara, desde a
origem do patriarcado o homem busca desesperadamente controlar a sexualidade da
mulher, para que ela se mantenha fiel ao seu papel de esposa e mãe dedicada, e
também conceda exclusividade sexual ao homem que afirma sua autoridade sobre
ela. Os homens sempre se reservaram ao direito de ter quantas parceiras
desejassem, mas exigiam que sua dóceis mulheres fossem virgens, para servi-los
com total obediência.
Muitos
ainda usam do discurso biológico para justificar tal postura, mas a pílula
anticoncepcional e outros métodos de contracepção provaram que a mulher também
sente desejo sexual, e que o sexo não é mais escravo da reprodução. Hoje muitas
mulheres buscam autonomia sexual e escolhem livremente seus parceiros, mas
ainda pagam o preço da desigualdade. Aquela velha história do homem garanhão x
mulher galinha, que concede honrarias aos homens de vida sexual ativa e cospe
nas mulheres que ousam ter a mesma liberdade. Puro preconceito e misoginia.
Foi dado
aos homens o direito inalienável de conhecer e explorar a própria sexualidade,
o que sem dúvida contribui para a fama de “insaciáveis”. Quanto mais se conhece
o próprio corpo e os desejos, maior a chance de vivenciar o sexo com novas
pessoas, e maior a satisfação. Infelizmente, ainda hoje esse direito é negado
às mulheres desde muito pequenas, sempre condicionadas a esconder e reprimir os
impulsos sexuais caso queiram o “respeito” dos homens. Essa é uma das razões
pelas quais a mulher leva mais tempo para ter consciência do próprio corpo,
para atingir o orgasmo e expor seus desejos na cama.
Enfim,
eu acreditei em tudo isso quando era mais jovem. Esse discurso foi martelado na
minha cabeça incessantemente. “Menina, não faz besteira”, “Mulher tem que se
dar ao respeito”, “Você foi pra cama com ele? Que absurdo!”, “Você não presta”,
“Só pode com o namorado, e depois do casamento”, “Você vai entregar seu maior
tesouro (virgindade) pra qualquer um?”.
A
minha família, apesar de não ser das piores, sustentou com louvor todos esses
mitos. Mas, na época, eu me sentia diferente das outras meninas que
simplesmente levantavam aquela bandeira da pureza – falsa pureza, é claro. Eu
via minhas amigas escondendo a sete chaves tudo o que faziam, vivendo praticamente
uma vida dupla, engavetando a noite passada e vendendo a imagem santificada
durante o dia. Eu já tinha dentro de mim uma necessidade de subverter tudo,
questionar tudo, e um dos meus primeiros “foda-se” adolescentes foi admitir que
eu tinha tesão. Como sempre, eu não queria viver uma mentira.
Em
primeiro lugar, eu nunca “dei” nada, ninguém ficou com um pedaço meu, ninguém
me tirou algo valioso e eu não tive que “ceder” aos apelos do parceiro.Ah,
minha buceta continua aqui, obrigada. Eu fiz…porque é legal fazer. Ohhhh. Eu
QUERIA, sabe? Oi? Tenho
vontade, voz, libido, autonomia, direito, ok? Em segundo lugar, “qualquer um”
somos todos. Coincidentemente, a maioria dos seres humanos não se conhece,
então somos sempre “qualquer um” antes de mais nada. Depois de conhecer um ser
humano, o mínimo necessário, ele deixa de ser “qualquer um” e se torna “um”,
mais um deles, porém com suas próprias características e particularidades.
Assim, a partir do momento que eu escolhi uma pessoa e me senti sexualmente
atraída por ela, deixa de ser “qualquer um”. É a MINHA
escolha, meu “um”,
entendido? E assim por diante, quantos “uns” eu desejar e que correspondam.
Logo, não existe isso de “dar pra qualquer um”, todos foram escolhas legítimas,
cujos critérios só dizem respeito a mim. Se eu quiser me relacionar mais vezes
ou construir um relacionamento mais sério, a escolha também é toda minha.
É
muito comum um machinho deduzir que você vai “dar” (termo mais zé punheta do
mundo) pra ele caso tenha “dado” para um número x de caras que ele conheça.
Mesmo que ele não seja nem um pouco interessante, ou você não tenha dado nenhum
sinal de aprovação. A mensagem que colocaram na cabeça é: “mulheres estão
sempre disponíveis”, e se a mulher em questão dá indícios de que é sexualmente
ativa, aí fica mais vulnerável ainda. Eles simplesmente não conseguem enxergar
uma mulher como um ser humano pensante, que toma suas próprias decisões, é
sempre uma menininha inconsequente, perdida, transando com os outros por pura
ingenuidade, ou uma putona auto-destrutiva transando por profunda devassidão.
Mas que merda! Não se pode simplesmente fazer sexo por vontade e
conscientemente sendo mulher? Não tentem excluir metade da humanidade de uma
vivência sexual saudável, não cola mais, meus queridos.
Uma
lembrança muito vívida me inspirou para escrever esse post. Na minha saudosa
adolescência, eu não sabia dos meus direitos, da minha capacidade, não
reconhecia minha identidade como mulher. Fui educada pra ter uma auto-estima
ridícula, pra obedecer as normas vigentes e me conformar com tudo, como a
maioria esmagadora das mulheres. E mesmo assim, resolvi desafiar a ordem das
falsas meninas virginais, buscando sexo com quem eu bem entendesse.
Foram
inúmeras ofensas, e, repito, não porque eu realmente fizesse sexo com muita
gente (deveria!), mas porque eu ASSUMIA gostar
de sexo e REIVINDICAVA fazê-lo com quem quisesse. Talvez eu tenha feito
muito menos sexo que outras amigas minhas, a diferença é que eu não admitia me
esconder pra agradar os outros. Eu procurava ignorar a opinião dos menos
conhecidos e até tinha sucesso, mas o que mais machucava era escutar o mesmo
discurso de amig@s próxim@s e pessoas queridas no geral. Mas acho que o pior de
tudo mesmo era que, em plena época de ansiedade por um “grande amor”, quando eu
ainda acreditava no mito do cara super incrível que ia me completar, percebi
que muitos não queriam me “levar a sério” por causa da minha postura.Hoje eu
saberia que não passavam de um bando de babacas estilo “8ªB”, que tratavam
todas as mulheres como se fossem lixo, até aquelas que se enquadravam na lógica
machista deles. Tentar se adequar ao padrão desses homens que odiavam mulheres
era a tarefa das minhas amigas, e vi o sofrimento delas de perto.
Mesmo
assim, sofri muito. Não entendia porque as pessoas agiam daquela maneira, mas
ainda demorei pra desvendar as hierarquias do macho e os papéis estúpidos que
reservavam às mulheres. Queria ser livre, mas os outros exigiam que eu me
reprimisse em troca da liberdade. Chorei noites a fio, acreditando que nunca um
homem ia querer ficar comigo, que eu teria que me adaptar um dia, cheguei a
acreditar que uma mulher era “suja” por sentir tesão. As pessoas que me amavam
me diziam que eu tinha que mudar, que tinha que “aceitar o mundo como ele é”,
que os homens sempre pegariam todo mundo e as mulheres apenas resistiriam a
eles o quanto pudessem. Logo eu, que gostava de abordar meus potenciais
parceir@s, que me sentia livre leve e solta, que aproveitava todos os momentos
e nunca deixei de respeitar alguém que estivesse comigo, mesmo que por uma hora
apenas. Pelo contrário, sempre tive consideração por quem fiquei, e sempre
esperei o mesmo – doce ilusão.
Outro
termo que marcou bastante, e que hoje me fez refletir, foi o “rodada”. Os caras
falavam em “rodar a banca”, “passar na mão de todos” (detalhe, considerando a
mesma regrinha de ficar com dois que se conhecem). Fiquei construindo uma
imagem para esse termo na minha cabeça, e seria mais ou menos assim: Vários
homens em um círculo, jogando uma garota meio amolecida, meio apática de um
para o outro, como se fosse um joguinho, passando-a pela “mão” de todos. Essa
garota, claro, é um ser totalmente inanimado, sem voz, sem presença, apenas
satisfazendo os homens que por alguma razão fazem parte do mesmo círculo de
machinhos.
É
exatamente como um “estupro grupal”, é o gang bang da vida real, classificar
mulheres como “rodadas” para que se sintam violadas em suas vidas, vetadas do
desejo sexual. GENTE, isso não existe! Mulher tem desejo, tem pele, tem
escolha! Mulher NÃO
É OBJETO, É SUJEITO DA RELAÇÃO. Objetos
não sentem, não falam, não decidem nada, sujeitos agem, reagem e se fazem
perceber! Got it? Nenhum homem tem o direito de submeter uma mulher ao rótulo
de um objeto inerte, que apenas foi utilizado por outros homens. A mulher
também sente PRAZER na
relação e sua moral não é arrancada durante um ato sexual. Não podemos nos render
a esse discurso que invisibiliza nossa condição HUMANA, temos que nos afirmar enquanto sujeitos
autônomos e capazes de tomar decisões!
Enquanto
as mulheres forem condenadas a meras presas sexuais, não teremos qualquer
sombra de igualdade. Enquanto o sexo for usado como ferramenta de poder,
coerção, humilhação, seremos todas prisioneiras dessa lógica. Imagine se você,
homem, sofresse uma série de retaliações apenas por fazer sexo com as pessoas
que deseja? Você se conformaria com isso?
É muito fácil para os homens, que são tão,
mas TÃO desenvoltos sexualmente que chegam ao extremo de COLECIONAR “presas” femininas. É com
tremenda ojeriza que ainda escuto os machos se vangloriando da quantidade de
mulheres com quem fizeram sexo, como se cada uma delas fosse uma conquista, uma
árdua batalha para…ter uma relação de prazer mútuo. Claro, é tido como um
enorme esforço para um homem convencer uma mulher, já atraída por ele, a
simplesmente transar. Mulheres não apreciam o sexo, elas apenas perdem a
batalha do acasalamento e se sentem obrigadas a baixar a guarda para o macho
reprodutor neandertal. Deprimente. Para o horror dos machistas, mulheres sentem
prazer sim, podem fazer sexo com várias pessoas sim, e nem por isso
precisam demonstrar superioridade diante d@s parceir@s – ninguém perde nada no
sexo.
Na
época, quando comecei um relacionamento sério, lembro de ter considerado o meu
parceiro um verdadeiro “salvador” por ter me aceitado do “jeito que eu era”.
Realmente, ele era uma ótima pessoa, que em nenhum momento se incomodou com a
suposta “fama” que alguns me atribuíram, mas nem de longe a atitude dele era
caridosa como eu imaginava. Acabaram acontecendo vários episódios no meu
relacionamento em que eu cedi e me calei por acreditar que ele merecia mundos e
fundos, eu praticamente me arrastava aos pés dele porque “ninguém mais me
aceitaria” como ele me aceitou. Basicamente, minha auto-estima estava em
migalhas, tudo por culpa de uns poucos imbecis que tentaram me reduzir a um
pedaço de bosta. Por sorte, tive a chance de superar tudo isso com o tempo –
mas muitas mulheres continuam imersas nessa lógica.
Se
eu pudesse voltar atrás e fazer algo diferente, com certeza não teria me
envolvido com metade das pessoas daquela época. Hoje, é claro, sou muito mais
segura e ciente da minha posição de sujeito na humanidade, e saberia reconhecer
de longe uma pessoa com más intenções. Mas, é sempre bom lembrar que existem
ótimos atores por aí, e mesmo que alguém tente um dia me rotular como puta ou
qualquer coisa do tipo, estarei totalmente consciente dos meus direitos e
sairei ilesa da situação. Aliás, quanto mais conscientes as pessoas ao redor,
maior a tendência de que o espertinho seja considerado um idiota. Qualquer
amig@ que convivo atualmente massacraria um homem que tentasse enquadrar uma
mulher como vadia por causa da sua sexualidade – os belos frutos do livre pensamento!
Toda
mulher, alguma vez na vida, já foi chamada de puta. E a prostituta em si é a
figura mais marginalizada da sociedade. Somos todas putas, vagabundas, vadias,
biscates, galinhas, fáceis e rodadas em algum momento, por um segundo. Ofender
uma mulher é sinônimo de ofender sua sexualidade, é tocar naquilo que nos
atribuíram como fraqueza: a nossa libido. Mas, ao contrário do que tentam nos
convencer, nossa sexualidade é força, é ousadia, é empoderamento. Somos
repletas de desejos, e somos donas de cada um deles.
O
que eu quero? Um mundo dominado por pessoas que respeitam a vida d@ outr@
independente do gênero e das escolhas sexuais. Eu e outras tantas mulheres
teriamos sido poupadas de tanto sofrimento, angústia e desespero, apenas por
não se enquadrar em um sistema que na verdade é uma grande masmorra. Querem
tomar nosso sexo e nossas vidas, transformar-nos em objetos manipuláveis,
descartáveis, a não ser que aceitemos suas condições alienantes.
A boa
notícia é que não precisamos mais deles. Aqueles que nos julgam, que enchem a
boca para dizer “puta”, que nos reduzem a utilitários da satisfação alheia, que
tentam nos desanimar, eles não são mais ninguém. Na minha vida eles são manchas
de um passado sombrio, e todos os que repetem seus discursos são imediatamente
recusados. Eu aprendi que ser mulher é defender os próprios direitos o tempo
inteiro, é praticamente brigar pela própria humanidade. E como diz a frase que
coloquei no meu Facebook esses dias:
“Qualquer um que queira me comandar
Estado, Igreja, Família
ou “Parceiro”
Será o tirano e meu
inimigo!”
Cely Couto, um beijo!